sexta-feira, 11 de junho de 2010

Os enigmas das navegações na Antiguidade - parte I

Desde sempre o mar exerceu um fascínio sobre o Homem. Ele era o «grande desconhecido», a última barreira. O que é que estaria do outro lado das águas? Que terras, que seres é que existiriam para lá desta barreira? Existiriam outros homens? Todas estas perguntas devem ter passado na cabeça do ser humano primitivo quando contemplava as imensas águas que se estendiam à sua frente.

Sempre que se fazem perguntas, há que encontrar respostas e para as descobrir havia que penetrar nesse imenso mistério que era o mar. Foram necessários homens audazes e corajosos que ultrapassaram os seus medos e se arrojaram a aventurar-se nas salinas águas que rodeavam as costas das regiões onde habitavam, descobrindo as suas maravilhas, mas também o seu lado terrível. O filósofo Anarcharsis, do século VI a.C., situa os marinheiros entre os mortos e os vivos pois eles entravam numa dimensão própria, povoada pelos seus fantasmas, pelos seus monstros, por sonhos e pesadelos.O mar exerceu o seu fascínio e o homem não mais o largou. Muitas histórias foram contadas e ainda se contam sobre viagens a sítios longínquos, uns imaginários, outros reais. Muitas aventuras ocorreram, muitas batalhas se travaram, muitos contactos se efectuaram. Neste trabalho abordaremos alguns povos e as histórias das suas navegações, algumas das quais sem grandes relatos e mergulhadas nas brumas do mistério. Os fenícios realizaram alguma viagem de circum-navegação ao continente africano? Estiveram os vikings na América antes de Colombo? E o que dizer sobre a presença chinesa nas costas de África? Eis algumas das perguntas às quais tentaremos dar, não respostas definitivas, mas algumas chaves para abrir algumas portas.


Os fenícios, um povo de marinheiros

O primeiro povo com grande vocação marinheira foi o fenício. A sua história começou nas montanhas do Kurdistão, onde se dedicavam à pastorícia. Num momento difícil de precisar na História, mas antes do III milénio a.C., aproveitando uma grande vaga migratória que abandonava a região, saíram dessas terras e mudaram-se para as planícies da Mesopotâmia, onde acabaram por não permanecer por muito tempo, seguindo com o corpo principal dos cananitas para as costas do Golfo Pérsico. Aí instalados iriam abandonar a pastorícia e enveredar pela via marítima. Thomas Crawford Johnston, apoiando-se nas referências de Plínio e Estrabão, situa-os nas Ilhas do Bahrein nos inícios do III milénio a.C. Foi o primeiro entreposto que montaram aproveitando o facto de se encontrarem localizados entre dois grandes centros comerciais da época, a Mesopotâmia e a Arábia, para além de estarem no ponto onde confluíam as rotas das caravanas.
A cidade de Gerha, situada na baía das Ilhas do Bahrein, tornou-se numa das mais ricas do mundo antigo. Os fenícios, porém, tinham interesse em estender a sua influência comercial para outros territórios e fizeram incursões nas costas que ladeavam o Golfo Pérsico, explorando para Sul as costas da actual Omã e seguindo posteriormente em direcção a Sudoeste chegando a territórios do Iémen. Para Leste teriam tido contacto com o actual Irão, podendo até mesmo ter chegado ao Paquistão e à Índia.

O seu imenso poderio comercial fez florescer um espírito de animosidade nos seus dois grandes vizinhos, a Babilónia e a Arábia, forçando os fenícios, que não eram um povo guerreiro, a irem abandonado a região em sucessivas vagas. Mudaram-se para as costas de Canãa, no actual Líbano, onde fundaram as cidades de Tiro, Biblos e Sídon. Novos horizontes comerciais se abriram e eles aproveitaram a oportunidade. Várias cidades foram sendo fundadas ao longo das costas norte-africanas do Mediterrâneo, mas cada uma delas mantendo a sua autonomia.Aproveitando a madeira do cedro do Líbano construíram barcos robustos e resistentes, ideais para longas navegações. O principal barco comercial possuía um casco largo e dependia mais da navegação à vela do que com remos. O seu interior era amplo para que pudesse albergar bastante mercadoria. Posteriormente, evoluíram para um barco que tinha, tanto à popa como na proa, traves firmes que lhe davam resistência, tendo um remo atrás para poder manobrar melhor a embarcação.





Mais tarde apareceu um outro tipo de barco cujo casco era baixo e que possuía um mastro com uma larga vela rectangular reforçada com cintas de couro. O casco era utilizado para transportar água potável dentro de ânforas tapadas com rolhas, sendo o deck de cima utilizado para transportar remessas importantes. Devido à sua natureza também militar a proa estava protegida por ferro para que a embarcação não fosse danificada no caso de impacto com um navio inimigo.





O Mediterrâneo começava a ser insuficiente para os fenícios. Eles aventuraram-se até às Colunas de Hércules e ultrapassaram-nas chegando até à Grã-Bretanha, de onde traziam metais para casa. Durante muitos séculos eles mantiveram as rotas do estanho secretas para os outros povos. A própria costa ocidental africana deve ter sido exploradas por estes intrépidos mercadores. Mas teria sido esse o limite?

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Filosofia e Vocação


O primeiro pensamento que pode vir à cabeça de muita gente é: «pode existir uma relação entre estes dois elementos?». E eu respondo: «Sim, pode.»

Para isso teremos que entender os conceitos. Em primeiro lugar: Filosofia. A primeira vez em que se pronunciou a palavra «filósofo» aconteceu na Grécia, pela boca de Pitágoras. Antes dele, aqueles que buscavam o conhecimento, que se questionavam sobre as leis naturais, a origem do universo, etc., eram chamados de «sophos» - sábios -. Eles, de facto, possuíam muita sabedoria, porém essa mesma sabedoria era um pouco complexa, pelo que era de difícil compreensão para a grande maioria das pessoas. Podemos encontrar um exemplo destes sábios em Parménides, Anaximandro, Anaxímenes ou Demócrito.

Pitágoras procurou realizar as coisas de um modo diferente. Ele quis tornar o conhecimento mais acessível ao povo, pois este também tinha questões para as quais não encontrava resposta. Um dia, quando questionado sobre se seria um sábio ele respondeu que não era, sendo antes um «philo sophos», ou seja, um amigo ou enamorado da sabedoria.

Quando qualquer ser humano ama alguém realiza todos os esforços para poder estar com a pessoa amada. Do mesmo modo, o filósofo procura alcançar a Sabedoria, não se poupando a esforços para ultrapassar os obstáculos que possam impedi-lo de alcançar o seu objectivo.

Filosofia seria, então, Amor à Sabedoria e está longe de ser essa disciplina teórica, que somente questiona sem encontrar soluções para os problemas. Não! A Filosofia questiona, mas com sentido, com uma finalidade e esse objectivo é eminentemente prático. E o primeiro elemento prático que a Filosofia nos proporciona é o conhecimento de nós próprios, da nossa natureza, dos nossos defeitos, virtudes e potencialidades.

O ser humano é uma caixa de surpresas, pois no seu interior existem vários elementos que nem ele próprio conhece. Daí a importância da Filosofia, pois ela proporciona os meios para que o homem rompa o véu que tolda a sua visão e, assim, consiga ver aquilo que realmente é e, deste modo, depois de constatar as suas potencialidades, as consiga transformar em actos, em concretizações.
E é aí que entra a Vocação. Etimologicamente a palavra deriva do latim «vocare» que quer dizer «chamado» ou «convocação». Mas esta chamada não está relacionada com uma profissão, mas sim com algo superior: a plena realização da natureza do indivíduo. Assim, aquele que consegue actuar dentro da sua vocação e trabalha com aquilo que faz parte da sua natureza encontra a sua realização e, consequentemente, a felicidade na vida.

Nesse sentido, deixo uma frase do célebre filósofo chinês Confúcio, que dedicou uma grande parte dos ensinamentos ao desenvolvimento do ser humano: «Escolhe um trabalho que ames e não terás que trabalhar um único dia da tua vida.» Para o pensamento chinês, se um indivíduo conseguisse manifestar o seu potencial naquilo que fazia e que a sua acção beneficiasse não só a ele, mas também a tudo em seu redor, ele teria encontrado a sua via (o Tao, a via realizante propagada na China antiga).

Assim sendo, o mais importante para o homem não é procurar um emprego que proporcione fama, riqueza ou honrarias, mas sim um para o qual tenha uma propensão, onde possa realizar-se verdadeiramente como indivíduo e manifestando qualidades como inteligência, perseverança, vontade, discernimento, memória, atenção, etc., elementos que moram no interior de cada um, mas que, nos dias que correm, raramente são bem explorados.

Vocação não é possível sem Filosofia, pois não existe a possibilidade de atendermos a um chamado da nossa natureza se não soubermos quem somos na realidade. E para descobrimos isso há que ter sempre presente o conselho que o grande filósofo grego, Sócrates, transmitia aos seus discípulos: «CONHECE-TE A TI MESMO.»

quinta-feira, 25 de março de 2010

Lenda Sioux sobre o Amor


O Amor é um sentimento extremamente abordado por pensadores, filósofos, artistas, poetas ou contadores de histórias. O Amor é algo que ainda hoje o ser humano não compreende totalmente, e menos ainda consegue aplicar. Uma das formas de procurar entender o que é essa força que faz o coração do Homem ultrapassar tudo e sacrificar-se pelo bem da pessoa amada é através de lendas.


Encontrei esta, que pertence aos índios Sioux da América do Norte, e que nos mostra um dos elementos - a meu ver - importante relacionado com o Amor. Apreciem e reflictam.


«Conta uma velha lenda dos índios Sioux, que uma vez, Touro Bravo, o mais valente e honrado de todos os jovens guerreiros, e Nuvem Azul, a filha do cacique, uma das mais formosas mulheres da tribo, chegaram de mãos dadas, até a tenda do velho feiticeiro da tribo:

— Nós nos amamos, e vamos nos casar — disse o jovem. — E nos amamos tanto que queremos um feitiço, um conselho, ou um talismã, alguma coisa que nos garanta que poderemos ficar sempre juntos, que nos assegure que estaremos um ao lado do outro até encontrarmos a morte. Há algo que possamos fazer?


E o velho, emocionado ao vê-los tão jovens, tão apaixonados e tão ansiosos por uma palavra, disse:
— Tem uma coisa a ser feita, mas é uma tarefa muito difícil e sacrificada... Tu, Nuvem Azul, deves escalar o monte a norte desta aldeia, e apenas com uma rede e as tuas mãos, deves caçar o falcão mais vigoroso do monte e trazê-lo aqui com vida, até ao terceiro dia depois da lua cheia. E tu, Touro Bravo — continuou o feiticeiro — deves escalar a montanha do trono, e lá em cima, encontrarás a mais brava de todas as águias, e somente com as tuas mãos e uma rede, deverás apanhá-la trazendo-a para mim, viva!


Os jovens abraçaram-se com ternura, e logo partiram para cumprir a missão recomendada. No dia estabelecido, à frente da tenda do feiticeiro, os dois esperavam com as aves dentro de um saco. O velho pediu que, com cuidado, as tirassem dos sacos e viu que eram verdadeiramente formosos exemplares...


— Agora — disse o feiticeiro, apanhem as aves e amarrem-nas entre si pelas patas com essas fitas de couro; quando as tiverem amarrado, soltem-nas, para que voem livres.


O guerreiro e a jovem fizeram o que lhes foi ordenado e soltaram os pássaros. A águia e o falcão tentaram voar, mas apenas conseguiram saltar pelo terreno. Minutos depois, irritadas pela incapacidade de voar, as aves arremessaram-se entre si, bicando-se até se magoarem. O velho disse:
— Jamais esqueçam o que estão a ver; este é o meu conselho: Vocês são como a águia e o falcão; se estiverem amarrados um ao outro, ainda que por amor, não só viverão arrastando-se, como também, mais cedo ou mais tarde, começarão a magoar-se um ao outro. Se quiserem que o amor entre vocês perdure, voem juntos, mas jamais amarrados

segunda-feira, 15 de março de 2010

A Viagem do Profeta

As obras de Khalil Gibran, «O Profeta» e «O Jardim do Profeta», são duas das obras mais inspiradas do século XX. Aprovietando a riqueza de ensinamentos que são veiculados nestes escritos a Nova Acrópole de Lisboa realizou uma encenação teatral adaptando as duas obras originando «A Viagem do Profeta», que foi apresentada ao público no dia 12 de Março, no espaço D. Dinis em Lisboa.

Na minha opinião a representação correu muito bem. Notou-se intensidade nos actores, que sendo amadores, foram à essência desta palavra (o que ama) transmitindo todo o seu empenho e dedicação em prol do teatro.

O teatro, mais do que uma forma de entretenimento, é um modo de transformar as pessoas, quer as que participam activamente (actores), quer aqueles que assistem (público). Na Grécia clássica temos o exemplo do Teatro Mistérico, dividido em Tragédia, Drama e Comédia, que tocavam vários aspectos da vida humana, permitindo ao Homem aceder a realidades psicológicas. O teatro era uma forma de o ser humano se conhecer a si próprio, de experimentar diversas sensações que lhe iriam abrir caminho para o seu interior. No fundo tratava-se de uma operação alquímica que ia transmutando aqueles que participavam e assistiam às peças.

Assim, interpretar os textos de Khalil Gibran não é somente um meio de transmitir ensinamentos, mas de vivenciá-los e de procurar assimilá-los tornando cada um dos seus textos propriedade individual.

Para terminar deixo um dos textos de «O Profeta» sobre o Amor. Que sirva de reflexão.

«Quando o amor vier ter convosco,
Segurai-o embora os seus caminhos sejam árduos e sinuosos.
E quando as suas asas vos envolverem, abraçai-o, embora a espada oculta sob
as asas vos possa ferir.
E quando ele falar convosco, acreditai,
Embora a sua voz possa abalar os vossos sonhos como o vento do norte
devasta o jardim.
Pois o amor, coroando-vos, também vos sacrificará. Assim como é para o
vosso crescimento também é para a vossa decadência.
Mesmo que ele suba até vós e acaricie os mais ternos ramos que tremem ao
sol,
Também até às raízes ele descerá e abaná-las-á
Enquanto elas se agarram à terra.
Como molhos de trigo ele vos junta a si.
Vos amanha para vos pôr a nu.

Vos peneira para vos libertar das impurezas.
Vos mói até à alvura.
Vos amassa até vos tomardes moldáveis;
E depois entrega-vos ao seu fogo sagrado, para que vos tomeis pão sagrado
para a sagrada festa de Deus.
Toda estas coisas vos fará o amor até que conheçais os segredos do vosso
coração, e, com esse conhecimento, vos tomeis um fragmento do coração da
Vida.
Mas se, receosos, procurardes só a paz do amor e o prazer do amor,
Então é melhor que oculteis a vossa nudez e saiais do amor,
Para o mundo sem sentido onde rireis, mas não com todo o vosso riso, e
chorareis mas não com todas as vossas lágrimas.
O amor só se dá a si e não tira nada senão de si.
O amor não possui nem é possuído;
Pois o amor basta-se a si próprio.
Quando amardes não deveis dizer «Deus está no meu coração», mas antes
«Eu estou no coração de Deus».
E não penseis que podeis alterar o rumo do amor, pois o amor, se vos achar
dignos, dirigirá o seu curso.
O amor não tem outro desejo que o de se preencher a si próprio.
Mas se amardes e tiverdes desejos, que sejam esses os vossos desejos:
Fundir-se e ser como um regato que corre e canta a sua melodia para a noite.
Para conhecer a dor de tanta ternura.
Ser ferido pela vossa própria compreensão do amor;

E sangrar com vontade e alegremente.
Despertar de madrugada com um coração alado e dar graças por mais um dia
de amor;
Repousar ao fim da tarde e meditar sobre o êxtase do amor;
Regressar a casa à noite com gratidão;
E depois adormecer com uma prece para os amados do vosso coração e um
cântico de louvor nos vossos lábios.
»

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Bad Dreams

Um pequeno poema de um dos grandes mestres sufis.

One day you will look back and laugh at yourself.
You’ll say, “ I can’t believe I was so asleep!
How did I ever forget the truth?
How ridiculous to believe that sadness and sickness
Are anything other than bad dreams.”

Rumi.


Já os sábios antigos focavam o facto de que somente a Luz existia e que as sombras não tinham uma existência real, pois onde a luz chegava não havia trevas. Do mesmo modo a Verdade tem uma existência real e somente quando nós não conseguimos vislumbrar a sua luz é que mergulhamos na tristeza e na doença. A nossa alma perde-se na escuridão da nossa personalidade e é necessário, muitas vezes, que alguém leve uma tocha para iluminar o caminho que nos traga de volta para a Verdade.

Essa tocha são os ideais que elevam a consciência do Homem e o fazem lutar pela Justiça, pelo Amor, pelo Belo e pelo Bom. Esses ideais devem estar presentes na Humanidade, pois quando eles desaparecem todo o mundo mergulha num imenso caos moral, abrindo as portas para uma Idade Média. No entanto, tudo isto são sombra, pois a verdadeira realidade encontra-se escondida no coração de cada ser humano. Cultivemos então esses ideais, para que todos possamos ser como tochas que iluminam o caminho daqueles que ainda se encontram mergulhados nas sombras dos seus próprios egoísmos, ódios e ignorância. Que um dia toda a Humanidade possa olhar para trás e rir de si própria, pensando em como se deixou enganar por maus sonhos, pensando que estes eram reais.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Ousar-Querer-Poder

Estas três palavras fazem parte de uma antiga fórmula hermética. Mas o que ela queria expressar com isso? Acima de tudo mostrar o reflexo no Microcosmos (Homem) dos três aspectos daquilo que Platão chamou o Logos e que nós denominamos Deus, cujo Poder é trino mas a essência é Una.
Os três aspectos são:
I.
Vontade / Lei
II.
Amor - Sabedoria / Energia - Vida
III.
Inteligência / Forma

A isto correspondia, então, a fómula Ousar-Querer-Poder, que procurava indicar ao Homem como é que poderia encarar a vida. A primeira coisa a fazer seria Ousar, que nos remete para o desenvolvimento de uma Vontade semelhante à do Deus que rege o Universo. Explica-nos o Prof. Jorge Angel Livraga que «esta [a Vontade] desenvolve-se por uma contínua atitude de coragem perante a vida; uma vocação decidida pelo risco e pelas aventuras exteriores e interiores». Trata-se, com efeito, de enfrentar os nossos limites, confrontar os nossos medos e inseguranças, de ultrapassar os nosso obstáculos. É conseguir sentir a eterna juventude e uma força interior imparável e saber vivê-las no quotidiano.

A segunda coisa é Querer, «mas querer de uma maneira tão intensa e superior que qualquer paixão humana, por sublimada que seja, não é mais do que uma sombra disforme desse Arquétipo» (Jorge Angel Livraga, O Sentido Oculto da Vida, Ed. Nova Acrópole). É um querer que vem do coração e que se mostra insaciável e que ultrapassa a razão. Isso manifesta-se no Amor por todos os Seres e todas as coisas, pois este sentimento permite-nos a aproximação ao mistério que habita em tudo no Universo, fazendo com que ultrapassemos a parte externa e conheçamos a essência.

A terceira coisa é Poder, e voltamos às sábias palavras do Prof. Livraga: «...poder, acima de tudo, pôr em prática e sob absoluto controlo, os dois primeiros elementos citados, pois os Terceiro Logos [Inteligência-Forma] nasce da união harmónica do Primeiro e do Segundo. Mais claramente: sem Primeiro e sem Segundo, não há Terceiro». Ou seja, o poder é a parte final de um processo de aperfeiçoamento interior. É a capacidade de poder realizar as coisas que se pretende, mas de uma maneira equilibrada e continuada.
Este ensinamento é algo que atravessou os tempos e que se manifestou sob várias formas. Não só na Sabedoria Hermética ou na Filosofia, mas também na Poesia. Não acreditam? Façam a relação de Ousar-Querer-Poder com «Deus quer, o Homem sonha e a obra nasce», de Fernando Pessoa. Boas reflexões.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Filosofia de Vida no Boxe


Estive no outro dia a assistir a um documentário intitulado «When we were kings» e que fala sobre o denominado «combate do século», que ocorreu em Kinshaza, no Zaire, em Outubro de 1974. Esse confronto punha frente a frente dois dos maiores pugilistas de todos os tempos: o gigante e poderoso George Foreman, e o apelidado «Louco de Louisville», Muhammad Ali (na minha opinião o melhor de todos os tempos.
Desde que abracei o caminho da Filosofia habituei-me a ver as coisas sempre de um ponto de vista filosófico, e o mesmo aconteceu com este documentário. Vê-lo fez-me pensar na estratégia que se pode utilizar na vida, para mim aquele combate simbolizou o combate que nós, como seres humanos, temos que efectuar no quotidiano.


Os Pugilistas

Primeiro há que contextualizar. Este combate foi considerado um dos maiores de sempre devido à presença de dois pugilistas de grande nomeada. Falar de Muhammad Ali é falar do Sr. Boxe, pois ele foi o grande expoente da modalidade nos anos sessenta e setenta. A sua rapidez e agilidade eram invulgares nos pesos pesados e a sua maneira de combater pouco ortodoxa, já que combatia com os braços em baixo, em vez de colocar as luvas em cima, para protecer a cara. Ele já tinha sido campeão do mundo, mas tinha sido despojado do título devido a ter-se recusado a participar na guerra do Vietname. Depois de quase três anos sem combater ele voltou ao ringue e após dois combates iria tentar o assalto ao título defrontando o compacto e ainda invicto Joe Frazier. Ali perdeu.
Entretanto entrava em cenário o oponente de Ali, George Foreman. Com um físico impressionante e uma força arrasadora, «Big George» causou uma das grandes surpresas da história do boxe quando derrotou o campeão em título, Joe Frazier em dois assaltos, levando-o ao tapete por 6 vezes!! Cerca de um ano depois ele defrontou Ken Norton, que tal como Frazier, tinha derrotado Ali, e despachou-o em dois assaltos também. O mundo do boxe estava impressionado com tal demonstração de força e poder.
Estes eram os dois concorrentes ao título. Ali contava com 31 anos na altura do combate previsto e Foreman com 25.

Passamos agora ao resto. Ambos os pugilistas conheciam a fama um do outro e sabiam qual era o estilo um do outro. Ali era conhecido pela sua forma de «dançar» no ringue, estando sempre em movimento e atacando quando podia. E era com isso que Foreman contava, e treinou no sentido de conseguir encurralar o adversário nos cantos do ringue ou nas cordas. Os jornalistas que testemunhavam os treinos de Foreman ficavam impressionados com a forma como ele conseguia fazer isso e poucos davam o favoritismo a Ali.
Pela memória de todos passavam as imagens das demolidoras vitórias sobre as únicas «bestas negras» de Ali e que Foreman tinha «destroçado» em somente dois assaltos. Todo o mundo jornalístico apontava a vitória para o campeão.
Ali, pelo seu lado, pensava o contrário, ele ainda era «O Maior», e iria provar a todos que estavam errados. Durante os treinos ele não mostrou grande coisa, deixando o seu companheiro de treinos bater nele enquanto ele estava nas cordas e soltando um ou outro soco. Isto causava incerteza na qualidade que Ali ainda teria para derrotar o seu oponente.

O Combate

No dia do combate o estádio em Kinchaza estava lotado. Todo o mundo estava em suspenso para saber o resultado da contenda. O primeiro assalto começa e Ali inicia a sua «dança» procurando fugir ao adversário e conseguindo acertar alguns socos. Mas logo aí observa-se uma inovação: como um verdadeiro estratega e profundo conhecedor do boxe Ali começou a efectuar os jabs com a mão direita e não com a esquerda. O jab é um soco em linha recta, com o braço paralelo ao solo e que não é muito potente, mas que pode ir desgastando o adversário. Também serve para poder abrir caminho para a «entrada» de um golpe mais forte que geralmente vem do braço mais forte, o direito.

Porém Ali tinha observado como Foreman bloqueava o jab de esquerda dos seus adversário com a sua luva direita mais avançada em relação ao corpo. Começando o combate com os golpes de direita surpreendeu Foreman e este levou com alguns socos na cara. Porém ao contrário do que Ali pensava, o seu adversário não se intimidou e passou a atacar como um touro em fúria. No final do assalto uma câmara foca a expressão de Ali e um comentador afirma que em todos os anos de boxe nunca tinha visto aquele olhar em Ali: era medo. Pela primeira vez na sua vida alguém não se tinha deixado intimidar pelo seu boxe e respondeu ainda com mais convicção. Muitas coisas devem ter passado pela cabeça de Ali, mas uma delas com certeza deve ter sido: «Este é o teu momento. Todos os especialistas estão contra ti, deixa de lado o medo e avança firme para aquilo que é o teu destino: ser campeão».

O certo é que a estratégia mudou, Ali deixou de efectuar a sua dança e passou a deixar Foreman atacar enquanto se encostava nas cordas e se protegia o melhor que podia. De vez em quando ia lançando fortes golpes que iam acertando na face do seu oponente. Durante 6 assaltos Foreman foi atacando, atacando, massacrando o corpo de Ali, mas sem conseguir acertar o golpe fatal na cabeça. A estratégia de Ali passava por conseguir absorver os golpes do adversário com a ajuda do balanço cordas e deste modo desgastar Foreman. E foi o que aconteceu.
Já bastante desgastado depois de vários assaltos em que atacou desenfreadamente a resistência e rapidez de reacção de Foreman já não eram as mesmas, e foi aí que Ali, durante o 8º assalto aproveitou a sua oportunidade e com dois golpes que «entraram» em Foreman levou o gigante ao tapete. O estádio «explodiu» de entusiasmo. Ali voltava ser o campeão do mundo, e contra todos os prognósticos! Ele era de facto «O Maior».
A Lição

O que é que podemos recolher daqui? Primeiro, a utilização do factor surpresa. Para poder derrotar Foreman, Ali variou os seus golpes no 1º assalto e surpreendeu o adversário. Isto faz-nos ver que não devemos ser robots na vida, comportando-nos sempre da mesma maneira programada perante as situações que nos ocorrem no quotidiano. Algumas situações exigem de nós uma maneira nova de abordar os problemas, novas perspectivas que poderão permitir as dificuldades.

Segundo, a superação do medo. Apesar de ter supreendido o adversário, o resultado não foi o esperado, pois este em vez de se amedrontar libertou a sua fúria. Nestas alturas a dúvida costuma entrar nas pessoas e isso leva ao medo de não se conseguir atingir o objectivo. Ali conseguiu manter o seu centro, controlou as emoções e puxou por toda a vontade que tinha dentro dele, para poder continuar.

Terceiro ponto, a improvisação. Se aquilo que estava planeado não tinha dado os resultados pretendidos então há que improvisar e arranjar uma solução. Ali passou a usar outra estratégia, devido aos treinos que tinha tido, em que deixava o seu companheiro socá-lo várias vezes e com força, Ali robusteceu o seu corpo em relação à dor e utilizou isso para poder desgastar, com a ajuda das cordas, o seu adversário. Por vezes na vida, temos que aprender a suportar vários golpes dolorosos, mas necessários para que no momento certo possamos ter acesso ao que pretendemos. Ali aguardou seis rounds, mas não de uma formam totalmente passiva, ele ia socando de vez em quando, da mesma forma que nós no quotidiano, mesmo perante a dor devemos ir realizando as nossas acções. Essas acções serão as sementes de algo que frutificará no futuro. Os socos de Ali foram deixando marcas em Foreman, a sua cara ia inchando aos poucos e os frutos da resistência à dor e dos seus actos frutificaram no 8º assalto com o KO de Foreman.


Conclusão

É assim que a partir de um combate de boxe se pode extrair algumas lições para a vida, pois afinal a própria vida é um combate, mas não carregado de violência, mas devido à oposição de forças. Uma uma planta para nascer tem que romper a semente e «lutar» contra a resistência da terra para poder chegar ao ar; um animal para sobreviver tem que combater contra as condições climatéricas adversas e os predadores que possa ter. É uma luta necessária que faz com que o melhore de cada pessoa possa surgir, se conseguir superar a angústia, o medo, a dúvida e o sofrimento.