quinta-feira, 1 de maio de 2008

A Sombra


Estou no escritório a ler e olho pela janela. O sol brilha no céu, mas na terra, observando as pessoas, nota-se uma sombra a rastejar. É uma sombra subtil, da qual muito poucos hoje em dia têm a percepção, mas ela está lá estendendo as suas garras. O seu lugar de abrigo é no interior das próprias pessoas e é lá que ela se alimenta. No Egipto era simbolizada pelo crocodilo, capaz de permanecer quieto sem mexer um músculo durante bastante tempo, esperando o momento oportuno para atacar.

Que sombra é essa que permanece no interior do Homem? Como nasce? Como se desenvolve? Essa obscuridade somos nós mesmos, pois a luz e as trevas que existem no nosso interior foram desenvolvidas pelas nossas escolhas. A partir do momento em que nascemos vamos, paulatinamente, tomando contacto com o mundo. Primeiro com uma curiosidade insaciável em relação aos objectos e pessoas em nosso redor, tudo é uma novidade. Depois passa-se para uma fase em que começa a haver uma aprendizagem em termos de comportamento: o que devemos fazer e o que não devemos fazer. É assim que vamos tomando contacto com os aspectos ideais da nossa personalidade ( a generosidade, a amizade, as boas maneiras, etc), mas ao mesmo tempo vamos relegando para o nosso inconsciente os aspectos negativos (o ódio, a inveja, a ganância, etc). Estes últimos aspectos é que vão formando a nossa sombra e vão-se desenvolvendo ao mesmo tempo que a nossa luz.
Numa chave é isso que vem expresso num livro da Índia antiga chamado Bhagavad Gita. Nele é narrada, como alegoria, uma batalha entre duas facções: os Kuravas e os Pandavas. O primeiro bando é constituído por 100 irmãos que simbolizam as várias características negativas que o ser humano carrega dentro de si e o segundo é constituído por 5 irmãos que simbolizam as virtudes humanas. Ambos têm um laço de parentesco que os une: são primos e foram criados juntos, tendo tido os mesmos Mestres. Porém, os Kuravas têm sede de poder e ganância, enquanto que os Pandavas seguem um caminho ético de acordo com as mais nobres virtudes humanas.

Este combate simboliza o confronto que todo o ser humano tem com a sua sombra. Ela é parte de nós, cresceu connosco e, por vezes, é-nos demasiado familiar. Muitas vezes a toleramos, pois temos medo de arrancar uma parte de nós, mas da mesma forma que quando estamos com um cancro é necessário removê-lo nem que para isso «uma parte de nós» tenha que ser arrancado, também as sombras têm que ser extraídas do nosso interior. Como o fazer? De uma maneira bem simples: iluminando todos os recantos dentro de nós. Onde há luz não existem trevas; é a luz das nossas virtudes que deve rebater as trevas. Devemos cultivar a amizade, a compaixão, a temperança, a generosidade, a coragem, a justiça, etc, e contrapor todos estes aspectos à nossa sombra. Há que ter a coragem de aplicar a máxima que se encontrava no Templo de Delfos: «Conhece-te a ti mesmo», mas conhecer de uma maneira sincera, absoluta e corajosa; olhando de frente para os nossos defeitos e as nossas virtudes. É deste modo que podemos ir eliminando a nossa sombra e, consequentemente, fazer a luz estar presente na terra e não somente no céu.

3 comentários:

Richard Hermeticum disse...

A meu ver, um dos enormes problemas que surge regularmente nesse processo de inconsciencialização de algumas emoções, é passagem da nossa felicidade para algo externo a nós, sendo por natureza instável e de dificil controlo (porque não depende inteiramente de nós).
Não quero com isto dizer que sigamos, por exemplo, a máxima de Epicteto que diz que não devemos dar importância a nada que não dependa inteiramente de nós; mas pelo menos o "Ás de espadas" tem que ser nosso. Se assim não for, hoje ou amanhã teremos de lutar contra um enorme dragão interior e, ao sermos apanhados desprevenidos, talvez comecemos a batalha já em desvantagem.
A Vida é, sem duvida, um caminho árduo em direcção à Luz...

Phtah disse...

Belíssimo texto.
A socialização levou a que escondêssemos essa sombra na caverna mais obscura que existe dentro de nós para que, aparentemente, fossemos menos animalescos, no entanto, o que se observa é que essa "animalidade" permanece, e é o pior inimigo que se pode ter, pois é interno, invisível e inerente a nós próprios. A determinada altura tudo teve certamente o seu propósito, tanto a animalidade como a relegação da mesma a uma mera sombra, nos seus devidos tempos, agora segue-se a etapa seguinte.
Assim, a luz é trazer à consciência esse inimigo e desfazer todo o apego e medo, combatendo-o com autoridade, não o aniquilando mas transmutando-o em algo melhor que nos eleve à condição de verdadeiros seres humanos.

Liseta disse...

É muito interessante a abordagem que fazes sobre a dicotomia sombra/luz. E muito obrigada por a teres partilhado. Gostaria de acrescentar que é, no entanto, extremamente útil existir, em nós, as experiências da sombra e as da luz. Aliás, julgo que esta nossa vida está cheia de testes, ou é mesmo o teste de uma forma global, da nossa capacidade de lidar com a densidade: conseguimos responder-lhe com a luz que nos é própria ou deixamo-nos densificar agindo, assim, sombriamente?
A sombra não é apenas caracterizada pelos nossos desejos motivados pela preguiça, pela inveja, pelo egoísmo no sentido mais superficial do termo. A sombra também se manifesta quando somos tomados de surpresa pela fúria, pela raiva, pela frieza dos que nos rodeiam. Perante estas expressões, como conseguimos reagir? Com paciência, compreensão e Amor, ou seja, reflectindo a Luz que nós somos ou deixamo-nos mergulhar na fúria, na raiva e na frieza que nos apresentaram e que é tão tentadora ao nosso ego, agindo, assim com os instrumentos da sombra?
E o mais engraçado de toda esta nossa prova é que quando ficamos parados a ver a vida a acontecer do outro lado da porta, quando estamos sozinhos e certos de quem somos, parece tão mais fácil agir de acordo com a luz... mas, o cerne da nossa evolução está quando nos envolvemos com a nossa circunstância: quotidiano, pessoas mais e menos densas, stress, acidentes de percurso,...aí sim, estamos, a todo o tempo, a tentar resgatar o Ser de Luz que somos.
E ninguém disse que era fácil! :)

(Gostaria de sublinhar a questão do comentário de Hermeticum: tudo está realmente no nosso interior e na forma que com isso lidamos, apesar de tentarmos, quase sempre, ir buscar respostas ao exterior, por ser, talvez, mais fácil e não nos fazer a desfeita de nos desmascarar.

Também acho importante o pormenor referido por Phtah, relativamente à necessidade de combatermos o nosso "inimigo" (porque pode até nem ser, de todo, inimigo,...)com firmeza e não o fazendo desaparecer (até porque,julgo, não ser isso possível), "mas, transmutando-o", eu acrescentaria, metAMORfoseando-o.

Obrigada a Hermeticum e a Phtah pela disponibilidade de nos presentearem com as suas importantes visões.)