domingo, 18 de maio de 2008

O Reino Proibido

Há muito tempo que não tinha tempo de escrever umas linhas, mas estou de volta. Fui ver há pouco tempo um filme chamado «O Reino Proibido», com Jet Li e Jackie Chan. Para quem gosta de um bom filme de artes marciais eu recomendo. Para além disso encontrei alguns elementos interessantes que vou comentar.

O filme conta a história de Jason, um rapaz que é um fanático pelos heróis de artes marciais chegando mesmo ao ponto de saber o nome de cada técnica usada por eles. Ele costuma frequentar uma pequena loja de penhores, em Chinatown, onde compra os filmes que adora. É aí que vê um bastão que é associado a um lendário herói: o Rei Macaco. O proprietário da loja diz-lhe que o objecto está ali desde que o avô dele fundou o estabelecimento, esperando que um escolhido apareça para o poder entregar ao seu legítimo dono. Durante um inesperado assalto o bastão é confiado a Jason que parte assim para uma aventura emocionante, trocando a cidade de Boston pelas paisagens da China Antiga, onde os Deuses também marcam a sua presença.

Encontrando ajuda de um bêbado lutador de Kung Fu e de uma linda guerreira ele parte na busca da montanha onde se encontra aprisionado o Rei Macaco para lhe devolver a liberdade e a sua arma mágica.
Neste filme nota-se a estrutura que está presente em todos os mitos heróicos. O Herói vive no seu mundo, muitas vezes perdido na ignorância da sua condição ou no anonimato (Jason era um rapaz simples com o qual os rufias se metiam). É então que algum acontecimento despoleta uma mudança na sua vida, des-pertando-o pa-ra uma missão (o assalto à loja no qual Jason é obrigado a par-ticipar é o ele-mento que o vai fazer res-ponsável pela arma mágica). O Herói é obrigado a abandonar o seu lar e parte numa busca (a saída de Boston e a entrada no reino mágico da China Antiga). É aí que os aconte-cimentos irão pôr a personagem em contacto com aquele que o irá ajudar a evoluir, que tanto pode ser um Mestre, como um Sábio, um Mago, etc. (neste caso trata-se de Lu Yan, o bêbado lutador de Kung Fu, papel desempenhado por Jackie Chan). Ao mesmo tempo que empreende a sua busca, o Herói vai sendo instruído, encontrando, em alguns mitos, outras personagens que o ajudarão na sua missão (Jason é instruído por Lu Yan, e na missão vão participar uma jovem guerreira e um monge).

Entretanto as Forças do Mal irão tentar impedir o Herói de atingir o objectivo (a bruxa e o malvado Senhor da Guerra). O Herói enfrenta a sua batalha decisiva, vence e retorna ao seu mundo totalmente diferente, mais maduro e livre dos seus anteriores limites (a batalha contra o Senhor da Guerra, a libertação do Rei Macaco e o retorno a Boston).

Querem um exemplo de algo semelhante? A história de Buda. Ele vive no palácio do seu pai e a visão de um doente, de um velho e de um morto irão fazer com que ele desperte para uma realidade que ele desconhecia (vivência no seu mundo, perda da ignorância e elemento que despoleta a missão). Ele, então, parte do palácio em busca da Verdade sobre o sofrimento humano (abandono do lar e início da procura). Frequenta vários Mestres que o fazem conhecer alguns elementos, acabando por encontrar a iluminação pelos seus próprios meios depois de ter vencido as tentações do demónio Mara (ajuda dos Mestres, acção das Forças do Mal e vitória na batalha decisiva). Depois disso abandona o exílio e volta ao mundo como Buda, o Iluminado (retorno já livre das suas amarras).


Outros elementos interessantes no filme é o modo como o desenvol-vimento do Herói vai acontecendo. Ele primeiro é alguém que se submete à sua fraqueza, não ten-do convicção no que é, ele desco-nhece a força que tem em potencial. De facto, Jason gaba-se de conhecer todos os golpes dos seus heróis de artes marciais, mas não sabe fazer nenhum. Isto é a mostra do conhecimento intelectual que muitos seres humanos têm, mas que não põe em acção. Afinal de que é que serve eu saber as Quatro Nobres Verdades de Buda se não as conseguir utilizar no quotidiano? A Sabedoria nasce quando se passa o conhecimento da mente para o coração, vivenciando-o e tornando-o realidade com os nossos actos. É isso que Jason vai aprender quando começa a sua formação. Há uma cena curiosa que acontece quando ele pergunta a Lu se este lhe vai ensinar alguns golpes como a Mão de Buda e alguns outros que ele conhece dos seus heróis. Lu encontrava-se a encher a taça de Jason com chá e deixa ela transbordar. Jason reclama, mas o Mestre replica dizendo que do mesmo modo que a taça transborda quando está demasiado cheia também o conhecimento não tem lugar quando temos a mente ocupada com muitos elementos. Jason não poderia aprender o verdadeiro Kung Fu se a sua cabeça estava cheia de fantasias, ele teria que «esvaziar» a sua taça mental para que houvesse espaço para a verdadeira aprendizagem.

Aí nota-se a importância do papel do Mestre no dispersar das trevas que toldam a mente do Herói, ele tem que abandonar um mundo criado na sua mente, uma fantasia, para começar a viver a realidade que ele irá ter que criar. Em certo momento refere-se no filme que o Discípulo segue o Caminho do Mestre, mas que em determinado momento terá que iniciar o seu próprio Caminho e descobrir a sua própria Verdade.

Os Mestres são aqueles que têm a chave para abrir as portas da Alma, mas isso de nada servirá se o Discípulo não aprofundar nos conhecimentos, não se esforçar e meditar por ele próprio. E é isso que Jason vai fazendo, praticando afincadamente os exercícios. Porém, ele ainda não está totalmente preparado. Muitas vezes os ensinamentos tornam o Discípulo demasiado confiante nas suas potencialidades, fazendo com que cometa algum erro que pode ser grave. No filme Jason comete esse erro quando, para salvar a vida de Lu, desobece ao conselho do monge e parte em busca do elixir da imortalidade no castelo do vilão, levando o bastão consigo. Tomando esta atitude ele não põe em risco somente a sua vida, mas acima de tudo põe em risco a vida de centenas de pessoas, pois se o bastão caísse nas mãos do Senhor da Guerra e fosse destruído o Rei Macaco não poderia voltar a viver e o mundo ficaria mergulhado nas sombras da tirania.

Por sorte, ou melhor, devido aos caminhos do Destino, no momento em que se preparava para ser executado e o bastão estava para ser destruído, o monge e a guerreira chegam para salvar a situação. Aqui nota-se a falhas que muitos de nós pode ter quando pensamos que o conhecimento que temos é o suficiente para alcançar mais altos voos. Há que manter sempre a humildade e não ceder ao orgulho. Mantendo a humildade posicionamo-nos sempre de maneira a mantermos a mente aberta para a novos conhecimentos e não criamos uma imagem falsa, pensando que somos o oceano, quando não passamos de pequenos lagos. Jason falhou nesse aspecto, no facto de não ter escutado o conselho de alguém mais experiente e de ter cedido ao seu próprio egoísmo, pois apesar de parecer que queria salvar o amigo, ele estava a tentar salvar-se da dor que sentiria ao perder o amigo, apesar deste lhe ter dito que ele o deveria esquecer. É com base nestas pequenas subtilezas que aparecem escondidas em coisas aparentemente certas que muitas vezes tomamos as opções erradas.

Por fim aparece um ensinamento ligado ao Karma. A rapariga queria-se vingar do Senhor da Guerra por este ter matado os seus pais. O monge diz que ele deve ser combatido, mas que não se devia odiá-lo, pois a procura de vingança podia-se voltar contra a pessoa que a pretendesse. Ela responde que quando estivesse à frente do vilão não era a paz que lhe iria oferecer, mas um dardo que estava preparado para matar os Imortais. Na cena da batalha final, ela tem uma oportunidade de executar a sua vingança, mas o Senhor da Guerra, com seu Chi desvia o dardo e projecta a guerreira contra um pilar, ferindo-a grave-mente. É Jason quem acaba por matar o vilão com o dardo.

Quando aparece o Rei dos Deuses, Jason leva a rapariga à sua pre-sença e pergunta se ele não poderia fazer nada para a salvar. Porém, sa-biamente, o Deus replica que ela própria tinha escrito o seu desfecho e que ele nada podia fazer contra isso. Ou seja, nós somos responsáveis pelas coisas que nos acontecem, tudo depende daquilo que fazemos e da intenção com que fazemos. Mesmo os Deuses nada podem contra a Lei que rege o Cosmos.

Tudo isto são elementos de interesse num filme leve, divertido com o qual se pode passar um serão agradável.




3 comentários:

Richard Hermeticum disse...

Só queria partilhar convosco um "incidente" que lembrei-me quando disseste que o miudo era tão fanático que até decorou o nome das técnicas dos heróis.
No domingo, durante um almoço com bastantes pessoas, uma rapariga de doze anos disse, com todo o orgulho, o nome, peso e altura de todos os membros da banda de musica Tokio Hotel. Ainda conseguiu dizer quantos quilos perde o baterista em cada concerto, e há quanto tempo é que outro membro qualquer da banda consegue manter o peso.
Fiquei estupefacto, não pelo espetaculo de erudição e memória da rapariga, mas pela quantidade de lixo que ela já tinha na cabeça.

soy yo disse...

hermeticum: Para mim, que lido quase diariamente com grupos de adolescentes, e que tenho um interesse especial por esta etapa da vida, não concordo que isto seja tralha a mais na cabeça. Mesmo quando têm estas flatulências mentais, importa pegar nisto e estabelecer pontes deste assunto para outros campos...Estes interesses tão característicos dos adolescentes não deixam de demonstrar identificações com determinado alguém, (neste caso esta banda) que pelo que me explicam os próprios adolescentes, as letras incidem sobre inquietações existenciais, vivências rotineiras, quotidianas, do sagrado, de valores como amizade, coisas tão presentes no mais comum do adolescente... Percebo o que dizes, mas se queremos despertar adolescentes para outras coisas, por que não entrar no mundo que eles melhor conhecem e "guiarmos" sob condições do livre arbítrio, o passeio para outras paragens, sem destronar implacavelmente aqueles que na cabeça dos adolescentes podem ser reis ?(para compreender o que é duradouro, talvez seja necessário conhecer reis (do) efémero(s).

CarmenM disse...

mmm, soy yo. Adorei o teu comentário. Concordo totalmente e é importante perceber que todos nós, antes de entrever (porque acho que conhecer é muito optimista) o que é o verdadeiramente duradouro (isto é, precioso) já pisámos intensamente na lama do efémero, do insubstancial... mas, induvitávelmente, caminhos necessários -às vezes- de percorrer. (Espero bem que o meu português nao seja muito, muito mau).